A crise sanitária resultante da epidemia de Covid-19 modificou irreversivelmente, e continua a modificar de modo irreversível as relações sociais, económicas e culturais à escala global, o que faz desta crise um acontecimento sem precedentes na história recente da humanidade. O Covid-19 expos claramente as desigualdades sociais, facto na América latina adquiriu uma dimensão singular devido à especifidade da sua estrutura socioeconómica: um grande número de empregos informais, as dificuldades de acesso aos cuidados de saúde, a densificação dos espaços urbanos, etc. Embora as doenças contagiosas e infeciosas sejam sem dúvida um problema de longa data, a epidemia de coronavírus mergulhou o mundo numa crise sanitária sem precedentes, intensificada pelas características das nossas sociedades profundamente interligadas não só no setor das comunicações mas também dum ponto de vista geográfico.
Certas consequências desta crise são ainda imprevisíveis; até à data vários domínios sociais, como o turismo, a educação, as atividades culturais, os padrões laborais, têm sido afetados. Peritos, políticos e leigos discutem publicamente as causas, o desenvolvimento e as consequências da epidemia, produzindo uma série de discursos sobre o que se entende por pandemia, crise, epidemia, etc. A partir do ponto de vista de várias disciplinas das ciências sociais e humanas, pretende-se suscitar o debate em torno da representação da pandemia no mundo ibero-americano , colocando em perspetiva os antecedentes, as causas, as sinergias e as consequências desta e de outras crises sanitárias. .
A emergência e legitimação do Estado moderno, com as suas capacidades coercivas ou, para utilizar a terminologia de Foucault, a instauração do regime do biopoder, enquadram esta reflexão que poderá também estender-se a outras sanitárias ocorridas num passado mais ou menos recente (sífilis, gripe espanhola, SIDA, etc.).
Pretende-se também analisar as reações coletivas às medidas de controlo social impostas pela pandemia e o modo como estas medidas se repercutem nos setores político (veja-se por exemplo o discurso da ultra-direita em Espanha ou a mobilização para uma nova constituição no Chile), económico (o fluxo e refluxo da chamada "turismofobia") ou cultural (o potencial subversivo do “teatro confinado” ou a expansão das plataformas de streaming Netflix, HBO, Amazon Prime ou Movistar).
Em suma, propõe-se uma reflexão não só sobre as mudanças socioeconómicas provocadas ou resultantes desta ou de outras crises sanitárias mas também sobre as potencialidades da criação cultural quando se trata de responder, integrar ou modificar o discurso médico-político dos organismos governamentais da América Latina, Espanha e Portugal.